13 de Novembro de 2017
Lá pelas tantas, ainda na Europa, convenci-me de que a China seria barra pesada. Vou ser verdadeira em relação ao motivo: o problema não era ser o país mais poluído do mundo, os habitantes pouco falarem inglês ou a comida diferente. Eram os chineses. Qualquer turista profissional reconhece a dificuldade que é pechar com aquelas excursões cheias de tênis coloridos, sombrinhas e máscaras cirúrgicas em qualquer atração turística. Eles se destacam do resto dos visitantes. Costumam falar alto, furar filas, não usar as palavrinhas mágicas e arrotar em público. No mundo do turismo, eles conquistaram péssima fama. Alguns concierges nos hotéis chegam até a avisar por baixo dos panos, colocam a mão na frente da boca, em tom de cochicho: "Vai tal horário para evitar os chineses". E foi em um dos momentos em que não tive o alerta, em um lugar que estava correndo os 100 metros rasos com obstáculos com os chineses, que pensei: se está ruim aqui, imagina lá, onde são a maioria.
Cogitei desistir, fiquei de má vontade. Se não fosse pela Laura, minha amiga que mora em Shanghai há três anos e a quem eu havia prometido a visita, talvez eu tivesse abortado a missão. Não faltaram motivos para se escapar, é verdade. Primeiro, na data que eu havia escolhido, a Laura não estaria e precisei mudar o calendário; depois, o visto demorou a sair em Hong Kong porque o passaporte estava cheio e, para finalizar, antes de embarcar, em Bangkok, fui roubada no aeroporto. São sinais, pensei. Não é para ir. Aos 45 do segundo tempo, ainda sentada no terminal, sem cartão de crédito e decidindo para que lado me jogar, percebi o agora ou nunca piscando em led à minha frente. Se não embarcasse naquele instante, em que estava com a passagem na mão e o voo ao meu alcance, talvez não me encorajasse mais.
Cheguei em Shanghai em um sábado de manhã, pouco depois do amanhecer. Já no táxi, enquanto me encaminhava para a casa da Laura e do Gustavo, observei a limpeza das vias, as bicicletas estacionadas sem trava por conta da segurança, e as flores impecáveis nos canteiros casando com as árvores – muitas, aliás - bem aparadas. Depois de me instalar, saí para passear com o casal, que me mostrou uma cidade bem cuidada, organizada, funcional e cheia de oportunidades: arte, restaurantes, cafés e shoppings. Após o turbilhão vivido nas metrópoles indianas, aquela atmosfera sem caos me trouxe paz. Opa, não era bem isso que eu estava esperando de um lugar onde o povo é tão mal-educado, afinal. O cenário não estava fechando. Então, enquanto almoçava, aproveitei para realizar todos os tipos de perguntas preconceituosas que se pode imaginar para a dupla de brasileiros que, até então, na minha opinião, carregava a cruz de ter que viver na China por questões trabalhísticas: por que eles empurram? Por que gritam tanto? Pra que tanta fotografia? É verdade que comem cachorro?
O discurso protagonizado pelo casal seria, mais tarde, reafirmado por outra gaúcha, a Mauren, que também mora há quase quatro anos na China. "É preciso entender a história de um povo antes de chegar às conclusões". O que eles sustentaram e me colocaram a engolir a seco e refletir sobre o quanto somos presunçosos e egoístas é que há não mais que 20 anos a China passava fome, as pessoas não tinham permissão para deixar o país e nem dinheiro para tanto. A luta por espaço, comida e emprego era diária e quem chegasse primeiro sobreviveria. Esse cara que senta ao seu lado no restaurante e se atira ao prato de comida ignorando a etiqueta que você conhece, provavelmente, assistiu parentes morrerem de fome e pobreza logo ali atrás. É como se tivessem ganhado na loteria. Em 15 anos, os caras conquistaram uma ascensão absurda e se tornaram a segunda economia do mundo. Os milhões de verdinhas caíram no colo de gente que estava acostumada a guardar os pilas embaixo do colchão.
Foi aí que começou a correria embalada pela letra do Lulu Santos: "Vamos viver tudo que há pra viver, vamos nos permitir...". Ansiedade pura. De sair, viajar, conhecer, experimentar, comprar, fotografar, tocar, sentir, observar, uma infinidade de verbos que não dá conta de tanto querer. Não há paciência para esperar na fila, eles têm pressa, coceira nas pernas, cansaram de aguardar a senha. Quando eles chegaram, grande parte do mundo já estava a quilômetros de vantagem. Eles também foram privados da informação. Só leem o que o governo permite, só se comunicam com os meios que os líderes disponibilizam, não futricam no Google, Facebook e sites de notícias do mundo para entender sobre outros comportamentos. Então, fica difícil compreender por que é feio cuspir no meio da rua, falar alto no teatro ou empurrar para garantir o melhor lugar. Ninguém ensinou. Mas, sabe o que descobri? Você pode ensiná-los. Se o cara furar a fila e você cutucar no ombro dele indicando que ele tem que ir para o final, ele vai. Sem briga, sem choro, sem malandragem. Eles estão se ajustando além das fronteiras, descobrindo que o mundo tem hábitos diferentes, e são dóceis com quem chega. Não falam a minha língua, mas se esforçam para ajudar. Espiam-me com curiosidade e sorriem. Querem me fotografar. Eu sou diferente deles. Nós somos.
O que nos falta é empatia – não está tão na moda? – e captar que para eles não é óbvio pensar fora da caixa. Nunca tiveram incentivo para serem criativos, ir além ou extravasar. Foram educados para seguir regras, padrões e limitados às bases. Enriqueceram por conta da produção em massa, porque disseram que eles deveriam trabalhar, lucrar e ponto final. Assim o foi. E agora, quando finalmente eles começam a colocar o pé para fora e aos poucos se livrar da máscara a fim de respirar um ar novo, vem toda a patrulha da moral para dizer que está errado, que são porcos, cansativos, que odeia, que não suporta. Óbvio, é mais fácil resumir a situação do que procurar analisa-la. Eu não estou defendendo falta de educação, apenas levantando a bandeira da tolerância e da paciência antes de qualquer pré-conceito. Vim à China para tomar este xeque-mate da Volta ao Mundo: não julgue o que não conhece e respeite a história de um povo. Ou julgue, mas não vem ficar irritadiço e definir como ignorância quando algum estrangeiro perguntar se no Brasil só tem índios, florestas e se cruzamos com macacos na rua.
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