28 de Junho de 2018
Depois de me empoleirar nos 45 centímetros de assento do avião, prender as meias por cima das barras da calça e abrir o computador no colo, a pergunta surgiu na tela dando a sensação de piscar ritmada por efeito do ponto de incursão: “quem é a sua criança interna hoje?”. Eu teria exatas 10 horas e 45 minutos entre Porto Alegre e Lisboa para fritar o cérebro, sem azeite português, com esta inquietação. Assim, era dada a largada para o Caminho Cabo da Roca, um workshop disfarçado de trilha liderado pelo palestrante e escritor gaúcho Gabriel Carneiro Costa.
Já que vamos falar de fatos de cunho pessoal, abro parênteses aqui para dividir um segredo: Costa é coach. Mas cansou dessa bagunça em torno do termo e da banalização da profissão que ganhou status fashion e vulgarizou o trabalho de educação emocional e comportamento humano que ele buscou com tanto afinco. Se tivesse carteira de trabalho hoje, acredito que sua profissão seria “encantador de pessoas”, bem como aponta em um dos seus livros já lançados. E foi em um das suas tantas viagens a Portugal, buscando dar gás à sua carreira internacional enquanto palestrante, que descobriu o ponto mais ocidental da Europa: o Cabo da Roca.
Ali, no farol, que por muitos anos serviu como último ponto de referência em terras firmes para os navegantes, Costa teve o insight de criar um curso acompanhado de uma caminhada. O objetivo era levar seus andadeiros a tomarem uma decisão: seguir navegando por costas conhecidas ou lançar o barco rumo ao inexplorado. A escolha viria ao longo dos passos esticados ao longo dos 50 quilômetros percorridos em 48 horas e de outros dois dias de dinâmicas, conversas e reflexões na companhia do escritor. Este é o link que me joga à cena que estou com os olhos estalados para a tela de um computador em um voo rumo a Lisboa.
Ouso afirmar que sei um tanto de mim. Tenho 10 anos de terapia nas costas, outros vários de acompanhamento psiquiátrico, uns cursos malucos de autoconhecimento no currículo e um ano sabático, completamente sozinha pelo mundo, na conta. Há pouco destas entranhas que eu ainda não saiba reconhecer no primeiro contorcer. Talvez, por isso, eu estivesse consideravelmente preparada para os dias em que teria que enfrentar o meu Cabo da Roca. Parecia até um tanto apática quando comparada aos outros 11 colegas. Ao contrário da caravana, demorei a acumular aquela dose extra de água nos olhos ao ser intimada pelo nosso guia a vasculhar a vida em lembranças, projeções e palavras escondidas no estômago por nunca terem sido vomitadas.
Aos trilheiros profissionais que podem achar uma dupla de dias de caminhada básico: é sobre a quilometragem mental que me refiro.Aos ociosos que acreditam que não vão chegar lá: é preciso mais preparo psicológico do que físico. Acredite, no meu grupo tinha uma mulher prestes a completar 80 anos e um homem acostumado a percorrer 22 quilômetros em suas caminhadas diárias com sua mochila equipada. Para ambos, o desafio foi mental. Isto porque Costa não deixa que o caminhante se desconecte do objetivo. Pontos de referência são indicados junto ao mapa e, quando alcançados, cartas com determinadas tarefas emocionais devem ser abertas.
No final do segundo dia, quando dobrei a curva em Colares e avistei o farol do Cabo da Roca meu instinto era correr. Esqueci as sete bolhas espalhadas pelos pés, a queimadura do sol nos ombros e o lábio ressecado do vento. Venci. Conquistei. Cheguei. Parece que é esta a ansiedade humana, né? Chegar logo. O perigo é esquecer de curtir o caminho, ou, nas palavras de Steve Jobs: “a jornada é a recompensa”. Eu não corri, me segurei, mas apertei o passo. E lá, embaixo da cruz que homenageia os incontáveis navegadores que resolveram partir rumo ao desconhecido e nunca voltaram para contar a história, senti pelo final da viagem, por ter que me despedir do grupo em breve e por ter finalizado mais um roteiro.
Refleti sobre o trajeto e percebi que, por mais que eu bata no peito para reforçar o quanto sei viver sozinha, já extrapolei minha cota de solidão. Diversas vezes procurei companhia na caminhada e me senti desconfortável ao pensar que poderia estar perdida e sem ter com quem contar para debater direita ou esquerda nos entroncamentos.
Este era o meu Cabo da Roca: reforçar o lema pessoal de que ir é bem mais interessante quando voltar faz sentido. E que, no somar do cálculo da vida da gente, o que vale a pena não é para quê, mas para quem você volta no final da trilha.
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