27 de Outubro de 2017
O ocidental não sabe servir. Foi isso que uma das mulheres – dona de uma loja de produtos de estética e cosméticos – que está com o grupo da Agência Diário de Bordo na Índia comentou e me pôs a refletir. Ela está ligada aos principais salões de beleza e spas do Rio Grande do Sul, lugares que deveriam ser dedicados a melhor entrega. Massagem, depilação, pedicure, manicure e afins são ótimos exemplos do servir. Não deve ser fácil ter que se abaixar para limpar as unhas de um desconhecido ou encarar a virilha de alguém que você conheceu há cinco minutos. É preciso humildade. E logo transparece quem está por trás do avental branco só esperando o final do mês ou abriu o coração para o encargo do dia a dia. Porque baixar a cabeça não é para qualquer um, é um dom.
Na Índia, serve-se. Mas não aquele serviço visando a recompensa no final. É de bom grado. Genuíno. Um dos mandamentos para os hindus, budistas e yoguis é "servir sem esperar nada em troca". Então o auxílio, o voluntariado e as cortesias são frequentes e até surpreendem quem não está acostumado com tal comportamento. Comida gratuita sendo distribuída em frente a templos com idosos, crianças, mulheres e homens ajudando a preparar e a pôr à mesa é normal, por exemplo. Assim como alguém pegar uma vassoura que está encostada em um canto e começar a varrer o pátio, a grama e até a rua. No ashram, em Madurai, encantava-me observar o nosso guru, Saju, mestre de yoga e nosso melhor professor, ministrar duas horas de aula e correr para a cozinha para ajudar a servir todos os alunos e colegas. Ele era sempre o último a sentar para comer, após circular incansável trocando as panelas e perguntando se alguém precisava repetir.
Mas a melhor amostra foi na noite de Diwali, festival das luzes indiano e a principal festa do país. Nesta ocasião, as famílias se reúnem para realizar suas preces, usam roupas novas, trocam presentes, organizam um jantar caprichado e aproveitam as doçuras típicas. É um momento para ser celebrado com quem se ama. Caímos de paraquedas em Délhi justo nesta noite. Ok, turistas podem brindar em restaurantes, no hotel ou passar em algum templo para assistir à função, mas o proprietário da agência indiana que estava recebendo o grupo junto com a Diário de Bordo resolveu abrir a casa para nós. A noite foi impecável, com direito a adolescentes dando boas-vindas na porta com rituais indianos, bate-papo com os avós, jantar preparado por eles e mimos ao final da noite. Uma experiência a ser recordada à eternidade.
Só depois de nos despedirmos que soubemos e nos demos conta de que eles haviam mudado todo o cardápio para agradar nosso paladar – para eles, acostumados a doses generosas de pimenta, a comida estava completamente insossa –, não se sentaram ao jantar para deixar as cadeiras a nossa disposição e nos serviram bebidas alcoólicas enquanto se mantinham na água ou no chá, já que o álcool não é permitido à religião e menos ainda à data. Mas o mais importante – na minha opinião – é abrir mão de passar esse dia aguardado por outros 364 só em família. Abrigaram oito estranhos por qual motivo? Nenhum. Cordialidade.
Agora, pensa você, no Natal, colocar um povo diferente para dentro de casa, que não fala a sua língua, temperar o peru com curry, coentro e pimenta a ponto de mal conseguir comer, deixar o espumante de lado e ficar na aguinha e ainda ter um gasto extra com mimos para agradá-lo. Sinceramente, você faria? Se a resposta for positiva, pergunto: seria só para acolhê-los e satisfazê-los ou precisaria de uma boa razão (a estilo business) para ter sentido? Não tente me enganar. Ou melhor, enganar-se. O fato não é que o ocidental não saiba servir. Ele não quer. Sente-se pior, diminuído, humilhado. Tem vergonha de favorecer o outro e, talvez, ficar em situação de desvantagem. É intragável pensar que você está lavando a louça enquanto eles descansam. É uma injustiça que eu tenha de varrer o chão que todos sujaram. Por que eu tenho que lhe favorecer? Tudo eu. Eu. Egoísmo. Ego.
Ah, o ego. Além de pouco sabermos como administrá-lo, não estamos, assim, tão interessados em baixar a bola dele. Ao contrário dos indianos, que têm o ego como inimigo declarado e vivem em constante batalha contra a vaidade excessiva. A crença é que esse é o melhor caminho para a paz individual e coletiva. E há fundamento. Não faça o bem para mostrar a quem ou espere razões para ser gentil. Feche os olhos e ouvidos antes de servir. Favores deveriam vir do coração e não da mente. Se ainda for complicado para você tamanha entrega espontânea, ao menos reverencie quem lhe serve. Pense bem antes de ser rude com o garçom, a manicure, a faxineira ou o gari. Provavelmente, a alma dele seja superior à sua.
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