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    Deserto de Saara: vamos terminar primeiro o dia de hoje?

    19 de Outubro de 2018

    Lá pelas tantas, depois de rodar centenas de quilômetros pelas estradas do Marrocos, chegamos ao destino final do dia e questionei o nosso guia, Azami: “a que horas sairemos amanhã?”. Eu estava preocupada com algo banal tipo lavar o cabelo ainda à noite ou na manhã seguinte. No que, ele rebateu com aquela sutileza nem tão suave típica à terra de Casablanca: “vamos terminar primeiro o dia de hoje?”. Toma, ansiedade. E, seguidamente, quando alguém do grupo perguntava a respeito de algo que ainda estava por vir ao virar da noite, ele entregava a mesma resposta. Certa vez, justificou: “não gosto de dar certeza sobre o amanhã, pois não sabemos as circunstâncias do caminho e posso acabar frustrando as expectativas de vocês”.

    Gostei desta matemática de vida. E linkei diretamente à experiência que tivemos no Deserto do Saara. A qual, obviamente, existia muita espera. Seria o ponto alto da viagem. E foi – um dos, porque o Marrocos não se cansa ao surpreender. Ao chegar à cidade de Merzouga, embarcamos em carros 4 X 4 e adentramos as areias. Após uns bons 20 minutos rodando, chegamos à beira do Saara, onde locais, homens berbéres, aguardavam-nos com camelos preparados para nos levar ao acampamento enfurnado em meio às dunas. Em uma típica vivência da região, nos locomovemos por cerca de 45 minutos no remelexo das quatro patas. Era fim de tarde, o sol baixava tímido, pois as nuvens começavam a pesar dando sinais de uma tempestade. Chuva no deserto. Fato raro, mas possível.

    Linha de chegada. Uma duna muito alta surgiu à frente e não seria possível subirmos montadas. Teríamos que utilizar nossas pernocas para a escalada. Nisso, o dia já havia se despedido e a noite começava a dar as caras, com uma que outra estrela salpicando. Quando atingimos o pico do monte de areia, a visão que engolimos foi daquelas que fotografia nenhuma dá conta. Trate de clicar com o psíquico. Lá embaixo, estava estruturado o acampamento particular para o grupo da Agência Diário de Bordo. Fogueira ao centro, luz apenas das tochas acesas, tendas brancas, com direito a cama e tudo, ladeando uma maior, onde realizaríamos as refeições. Naquela noite, o silêncio chegou a assustar. O vento ganhou potência, os insetos megafone e os smartphones se calaram diante da falta de serviço. Aliás, isolamento e impossibilidade de conexão externa: recomendo.

    Mas o espetáculo estava reservado para o amanhecer. Trapaceamos o sol e pulamos da cama antes dele. De novo, escalamos todos aqueles grãos empilhados (não é uma loucura pensar nisso também?) e nos posicionamos estrategicamente à espreita do raiar. Dali, viria o nascer de sol mais lindo de todos. Já tive o prazer de captar uma cena semelhante em Outback, na Austrália, e vos digo: não há sol que nasça como estes do deserto. É tanto contraste, geografia e geometria que provoca apneia. E, assim, depois de retornar à base e finalizarmos nossa vivência com um farto café da manhã, encilhamos nossos camelos e voltamos à realidade da urbanização.

    E qual a ligação com o discurso de Azami dos primeiros parágrafos do texto? A inconstância do deserto. Não há um momento sequer em que aquele cenário não esteja se modificando com os fatores climáticos. É maior do que a capacidade humana pode alcançar. É chuva, sol, calor, frio, mas, principalmente, vento. De tempos em tempos, as barracas precisam ser levantadas e encontrar um novo lugar para receber seus hóspedes. Não é possível fincar bandeira em território algum. E uma duna que um dia serviu de arquibancada para turistas, pode se desfazer com o passar de uma chuvarada. Significa que não existe amanhã para a experiência que vivemos lá. No dia seguinte, será outro cenário, mesmo que delicadamente modificado.

    É interessante pensar que jamais poderemos reproduzir uma situação tal e qual. Nos injeta intensidade. Fora de hipocrisia, entendo que não há como vivermos 100% sob a filosofia budista de que o passado não volta e o amanhã pode não vir. Vez que outra a gente precisa prever que talvez seja melhor deixar para lavar o cabelo na manhã seguinte. De qualquer forma, a consistência desta experiência me colocou a pensar – mais uma vez – a respeito do conceito de mindfullness e, ao menos naquelas situações que a gente julga de extrema imparidade, conseguir desapegar dos próximos capítulos. E se é que ajuda a reforçar: há quem defenda que as lembranças não são confiáveis, são frequentemente alteradas por nossas emoções. Ou seja, trate de viver direitinho o agora, caso contrário, nem a memória salva.

    *A jornalista viajou a convite da Agência Diário de Bordo

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