09 de Outubro de 2017
Hoje, quando o sino tocou às 5h30min e abri os olhos, não consegui me mexer. Virei para o lado com dificuldade, sentindo o pescoço e as costas travados. Arrastei-me até a caixinha de remédios, procurei um Dorflex e uma pomada antiflamatória e voltei a deitar na cama, estatelada, observando o ventilador de teto girar devagar. Hoje completei uma semana no Sivananda Ashram de Madurai, no sul da Índia. Um dos mais tradicionais do mundo quando se fala de yoga. E um dos mais rígidos também, com regras que devem ser seguidas à risca ou você pode ser convidado a se retirar.
Aqui, mesmo com a temperatura média de 36ºC, temos que usar roupas largas e não mostrar as pernas acima do joelho, nem os ombros. Também não tem ar-condicionado e precisamos manter os quartos fechados para evitar a entrada dos macacos. Sabonete, água quente ou papel higiênico nos banheiros? Luxos desnecessários, cada um que se vire como pode. O silêncio dita as regras. Nada de música, celular – a internet é liberada apenas durante uma hora por dia – ou conversas em volume alto. Ah, e o celibato também é norma da casa.
A dieta precisa ser seguida à risca: doces, carnes, ovos, cebola, alho, temperos fortes e bebidas alcoólicas não são permitidos. As refeições são servidas duas vezes ao dia, às 10h e às 18h, intercaladas por dois períodos de chai – chá com leite e jagari (açúcar natural) – que ajuda a dar sustento para as atividades. A primeira aula de yoga é praticada ainda em jejum e não é leve, posso garantir. Nosso roteiro é organizado com quatro horas de aulas de yoga, duas de meditação, uma hora de aula teórica e outra de karma yoga – que nada mais é do que faxinar o ashram para trabalhar o altruísmo e diminuir o ego.
Você aí, que mal ouviu falar de um ashram, deve estar pensando: "Qual o propósito? Para que isso?" Acho que a maneira mais simples de explicar é dizendo que se trata de um lugar para se fechar com o seu corpo e sua mente sem estímulos externos. Uma espécie de reabilitação da alma. A maioria das pessoas que encontrei por aqui está em um processo de mudança, buscando se perdoar, entender-se, trocar hábitos diários, desistir de rotinas viciadas e tentar levar uma vida mais leve e saudável. Não, não tem nada a ver com ripongagem. Pechei com professores, engenheiros, arquitetos, fotógrafos, economistas, músicos, velhos, jovens, mulheres, homens, todos com culturas tão diferentes, mas de acordo: a paz mental é o caminho.
Eu só desfiz minha mala ontem. Demorei para me convencer de que iria aguentar o tiro e me manter aqui por duas semanas. Nos primeiros dois dias, acreditei que não vingaria. Minha mente girava em looping com dois pensamentos: fome e ir embora. Coca Cola, café, chocolate, omelete, panquecas, preciso sair daqui, vinho branco, massa carbonara, sorvete, bolo de cenoura, salada caprese, isso não vai dar certo. Braços tremendo e eu não conseguia me manter nas posturas, barriga roncando e eu tentado afastar os mosquitos enquanto procurava focar na meditação, pernas formigando e eu aprendendo a respirar corretamente em posição de lótus. Vi quatro pessoas partirem derrotadas. Só que eu não aceito desistência sem entregar tudo o que tenho antes. Costumo partir dos lugares e das pessoas quando vejo que fiz de tudo para que funcionasse, mas não restaram mais alternativas. E, decididamente, esse não era o caso.
Foi assim que a chave girou. Se é para estar, esteja. Comecei a comer até o que não me agradava para acabar com a fome, fator crucial da perturbação, aderi ao chai com bastante jagari – no início, torcia o nariz, mas vi que sem ele eu sairia perdendo. Já que repelente não era o suficiente contra os insetos, arrastei minha canga comigo às meditações para me cobrir. A comunicação com o meu corpo melhorou e passei a identificar cada dor nos meus músculos e compreender de que maneira, sem sair da posição yogui, poderia amenizá-la. É a tal da adaptação, que nunca é simples. Fui pegando o jeito, o meu jeito de lidar com as dificuldades, e, ao me desacorrentar delas, corri alma adentro. O resultado desse intensivo é a calmaria. Não há passado nem futuro que incomodem a ponto de fazer desconectar do trabalho presencial. Os sentimentos como saudade, raiva, tristeza, amor, ansiedade, se acomodam por dentro. Ficam ressonando, aguardando o meu toque de despertar na hora exata. É a primeira vez que enxergo a paz tão ao alcance que quase consigo tateá-la.
Por falar nisso, a única postura que me desafiou ao extremo foi aquela em que ficamos de ponta-cabeça. Dizem que um dos benefícios de trocar os pés pelas mãos é que o sangue desce todo para a cabeça e dá uma folga ao coração, que desacelera e pode até parar. Demorei para entender a força, o equilíbrio e as proporções da pose, mas o que me atravancava mesmo era o medo. Um indiano de codinome Alma me ensinou que para subir eu precisaria aprender a cair direito. Derrubou-me diversas vezes até que o pânico de estar no chão passasse. Assim, de pouco em pouco, eu comecei a erguer as pernas. Ele alertou: vá até a metade do caminho, quando estiver segura o suficiente, comece a rumar ao topo, devagar. Não quis esperar, dizem que a espera é a ferrugem da alma. Chegava antes às aulas e era a última a deixar a sala em treinos exaustivos. O fato de não conseguir estava me perturbando. Em um dos tantos tombos, com os cotovelos calejados, Alma estava por perto e disse, alarmado: "Por que tanta pressa?"
Assim, por conta do meu ego e apreensão de ficar para trás, passei o dia todo na cama. É o ashram me berrando, daqueles gritos em que sai cuspe de tanta razão: há tempo para tudo. Acelerar e pular etapas só atrapalha e atrasa o melhor resultado. Toma essa lição, vida.
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