20 de Novembro de 2017
Para chegar até Outback, na região central da Austrália, tive que pegar três voos, encarar diversas horas de aeroportos e ainda balançar em uma van até o destino final. Lá pelas tantas, enquanto tomávamos um espumante assistindo ao entardecer por trás do Uluru, maior monólito do mundo, Tom, um dos rapazes que estava no grupo, entre um gole e outro da bebida, com a outra mão no bolso e aquele tom blasé digno de um inglês original de Londres, divagou sobre os desejos nada usuais dos seres humanos: "Viajamos até aqui para passar o dia inteiro observando uma pedra". Arrancou gargalhadas da turma, é claro, reafirmando aquela teoria de que turista paga caro e ainda passa perrengue.
Ainda restava metade de uma garrafa quando as nuvens começaram a ganhar corpo, unir-se tomando força e dar sinais de que não demorariam a lavar a areia vermelha do deserto. Levantamos o acampamento, embarcamos na van e pegamos a estrada. Bastou a noite adentrar para o céu se iluminar de relâmpagos em sincronia com os trovões. Eu estava a ponto de pegar no sono quando percebi que o carro parou no acostamento atrás de outros tantos. Assim como os que dividiam a carona comigo, turistas, na maioria europeus e chineses, saíam dos automóveis sem se importar com a prévia da chuva, arrancavam com pressa tripés, lentes e acessórios de câmeras fotográficas e se posicionavam para guardar em imagens a tempestade. "Isso é muito melhor do que o pôr do sol", alguém comentou. Para eles, o céu iluminado por raios era novidade. Alguns nunca tinham visto tais dimensões.
Peguei-me analisando que, no silêncio do deserto, dezenas de pessoas se enfileiravam para assistir à chuva. Para mim, é um ato recorrente. Sou amante confessa da chuva. Mesmo nos poucos metros quadrados do meu apartamento, em Porto Alegre, aprecio me escorar na janela, ou sentar na poltrona analisando a fluidez dos pingos. Gosto do cheiro. Gosto do tom. Gosto da cor. De certa forma, a chuva me aconchega. Meus amigos mais próximos sabem, inclusive, o quanto adoro apetrechos como guarda-chuvas, galochas, capas de chuva e seus semelhantes.
Talvez, se a Beatriz fosse analisar a situação, diria que tem algo relacionado ao fato de eu querer ir contra o fluxo. Ser do contra. Amar o que parece ruim à maioria. Eu simplificaria: é a possibilidade de me manter seca que me encanta. Protegida. No meu caso de sorte, chuvarada sempre significou ficar em casa, provavelmente em família, esperando o tempo passar tomando chá, escolhendo um filme ou lendo um livro. A bonança se antecipa.
Mas aterrissando do devaneio acima, reparei como a experiência no deserto estava intimamente ligada à natureza. Dormíamos em sacos de dormir para cuidar o brilho das estrelas até o último suspiro antes de fechar os olhos, acordávamos antes do sol para acompanhar seu nascer no horizonte e passávamos os dias em trilhas entre rochas, cânions e encontrando oásis formados naturalmente. Em consequência, me colocou a pensar o quanto a minha Volta ao Mundo estava em busca deste tipo de acontecimento: as praias mais belas, as paisagens mais exuberantes, montanhas intocadas, animais em vida selvagem. Aliás, não a minha Volta ao Mundo, a de todos.
Até há aquela curiosidade normal por templos, arquiteturas diferentes, museus e shoppings, mas o que realmente pega fundo é o que vem da natureza. O que não tem toque humano e não nos é completamente compreensível. Existe magia no que não sabemos modificar —nem nos cabe esta missão. A gente procura o que nos falta e a natureza está em extinção nas nossas rotinas. Talvez, se pudéssemos dar-lhe mais espaço, a vida poderia ser um tanto mais leve, menos acelerada.
No meio de uma das madrugadas, acordei precisando ir ao banheiro, um tanto distante do acampamento. Com a ajuda de uma lanterna, caminhei lentamente e me dei conta do quanto estava confortável com a situação de percorrer a escuridão do mato. Estou chegando ao final da linha em total sintonia com o ambiente, sem medos bobos de insetos indefesos, sem aversões desnecessárias ao que vem da terra ou do céu. Percebi que me sentia até mais aconchegada dormindo ao relento do que dentro das barracas – que estavam mais empoeiradas ou marcadas pela presença de outras pessoas. Essa última imersão — sem sinal do celular, luxos ou distrações — me emocionou. Estou sensível com a proximidade do fim, é verdade, mas foi mais especial. Obrigou-me a realizar retrospectivas, relembrar o caminho e a falta de planejamento. Tudo o que foi se apresentando no percurso e se impondo perante uma Fernanda com medo da noite, que fugia de besouros e se tensionava inteira ao entrar em um quarto que não parecia tão limpo.
A expectativa de quem me espera em casa é de que eu tenha mudado. Seja outra. Não volte à mesma posição de largada. Mas eu não mudei. Sigo a mesma. Só que agora, quando me olho, me enxergo. E o mais incrível: enxergo vocês com tanta clareza que chega a assustar.
Quando o pequeno avião decolou de Alice Springs rumo a Brisbane, fechei os olhos e tive a sensação que era um pássaro. Que tinha asas e estava voando. A cada curva da aeronave, a cada descida rápida, eu podia sentir que flutuava e movia meu corpo conforme o vento. Chorei pela primeira vez em nove meses. Um choro contido, não sei se de dor, de felicidade, de saudades ou de melancolia pelo ciclo que começa se fechar. O que aconteceu foi que me fundi com a trilha. Agora, eu sou a estrada.
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